(*) Geraldo de Majella
O final de tarde na praia da Avenida da
Paz, quando o sol está se pondo, é deslumbrante. Os banhistas param e
acompanham, olhando a esfera celeste avermelhada, com brilho menos intenso, parecendo
querer tocar suavemente as águas mornas do oceano. O trânsito no horário cresce
na orla em direção aos bairros do litoral norte. A pressa, desnecessária,
impede os motoristas de apreciar o espetáculo do verão na baia de Jaraguá, em
Maceió.
O Museu Theo Brandão, imponente, está ornamentado
para receber os foliões que vão chegar à concentração do bloco carnavalesco Os Filhinhos da Mamãe. O museu tem
abrigado o mais inventivo dos blocos carnavalescos de Maceió. Irreverente,
debochado, arrasta para a folia cada vez mais foliões, gente de todas as idades
e classes sociais. São brincantes, escritores, jornalistas, professores,
boêmios, malandros, jovens e velhos. É que o bloco conquistou a cidade.
A mídia tem dispensado espaços generosos,
mas é a internet quem mais influencia e desperta a curiosidade dos novos
foliões. Matilde compartilhou na página do Facebook
da melhor amiga, Cecília. Clicou: curtir, todos fazem assim. Tomou a decisão
nesse instante de que iria sair no bloco.
O carnaval acendeu uma luz, passou a
ocupar a sua cabeça. Dormiu e, ao acordar, despertou alegre, cantarolando frevos
tradicionais. Um anjo em forma de mulher vai cuidar da fantasia. A decisão de desfilar
num bloco tão irreverente causaria inevitavelmente algum mal-estar na família.
A criação que recebera dos pais foi rígida, quase castrense, e a sua casa era
uma minicaserna encravada nas imediações do mar de Jatiúca.
Acontece que a decisão estava tomada.
Não era mais uma adolescente para continuar a viver amedrontada, a receber ordens
absurdas e a ouvir gritos insolentes dos pais e do irmão primogênito. A data em
que completaria vinte e oito anos se aproximava. Matilde resolveu ela própria se
presentear ao decidir brincar as prévias carnavalescas saindo no bloco Os Filhinhos da Mamãe.
As grosserias tantas vezes assacadas
contra si, com o passar do tempo foram esmaecendo. Ordens não lhe dizem mais
nada − nem medo, nem ódio. Escuta indiferente. Olha séria, apenas presta
atenção e faz a leitura labial dos impropérios dos pais e do irmão.
Esses lampejos de pensamentos lhe
ocorrem no caminho entre a casa e o encontro com Carmem Silva, a costureira
indicada por Cecília. O desenho rabiscado na noite anterior numa folha de papel
é tirado da bolsa e entregue à costureira, que olhou, aprovou, fazendo apenas
pequenas modificações e marcando a entrega para dois dias depois, véspera do
desfile.
O prazo para a entrega das fantasias
foi cumprido, o pagamento foi efetuado e um sorriso largo se abriu, expressão
de alegria. O retorno até o apartamento onde mora Cecília foi rápido, não havia
trânsito. Era chegada a hora da prova das fantasias. Tudo saiu na medida exata.
Carmem, experiente costureira, nascida em Anadia, não quis contar, no momento
da entrega da fantasia, mas costuma se fantasiar também para sair no bloco Os Filhinhos da Mamãe desde a sua fundação.
As amigas combinaram se fantasiar de
bailarinas. Matilde resolveu diferente: decidiu pela fantasia de Dama do Lotação. Era o chute no balde a ser desferido no moralismo
familiar. Ao se passar por Solange, personagem interpretado pela atriz Sônia
Braga no filme dirigido por Neville de Almeida, o espírito irreverente de
Nelson Rodrigues havia baixado, talvez inconscientemente, na Virgem de Jatiúca.
Ao se vestir com a fantasia e simular
o desfile, logo Matilde percebeu o olhar de aprovação das amigas. Era o sinal que
faltava para aumentar ainda mais a segurança pessoal de que havia tomado a
melhor decisão e, além de tudo isso, ainda poderia ser um dos destaques do
bloco, pelo menos entre as amigas. O apoio moral não lhe haveria de faltar.
Todas conheciam a sua história de vida.
Insegura, com medo, e além do mais, prestando
contas de tudo, até dos atos mais banais, sair fantasiada no carnaval de Dama do Lotação, o que poderia significar
um grito estridente de libertação ou a instalação definitiva do conflito seio da
tradicional família.
Os pais e o irmão sabiam, pois Matilde
comunicara antecipadamente que iria olhar os desfiles dos blocos em Jaraguá.
Nada que chamasse a atenção, todos os anos isso acontecia. No apartamento de
Cecília, chegou com tempo suficiente para vestir a fantasia e bebericar cerveja
− não era comum −; o álcool poderia, no seu entendimento, acalmá-la.
As músicas que se ouviam eram
marchinhas e frevos tocados e cantados nos antigos carnavais de clube e nas
ruas. O ambiente contribuía para o aquecimento, era a pré-concentração. Os
carros ficaram estacionados, um táxi foi chamado pelo telefone, e assim todas seguiram
para a concentração do bloco no Museu Theo Brandão.
A aglomeração crescia, foliões chegavam
de carros, táxis, e a maioria chegava a pé, caminhando pelas ruas que levam à Avenida
da Paz. O som da orquestra de frevo, quando elas chegaram, estava tocando. O
mais alegre dos foliões é o famoso bailarino Carlos Vasconcelos, impecável com
a sua fantasia, adquirida no Rio de Janeiro: rodopia pelo pátio, com estilo
triunfal. É quem mais se destaca, e de há muito se tornara a atração do bloco. Entre
tantos foliões estão as bailarinas e a Dama
do Lotação.
Matilde, descontraída, continua
bebericando cerveja moderadamente e dançando sem parar desde que chegou. Encontra
outras conhecidas, do tempo de colégio, do bairro. Mas há algo diferente: um
olhar penetrante em sua direção se torna constante, um sorriso exteriorizado, a
indicar da parte do folião desconhecido avidez em se aproximar.
Esse flerte a distancia é discreto, mas foi
percebido por Cecília como um gesto magnânimo. Uma espécie de cupido, sem arco
e sem fecha, dá indicações para as amigas, e num passe de mágica todas
procuram, sem que Matilde desconfiasse, aproximá-los.
O álibi encontrado estava entre os
dedos: o cigarro. Cecília, a pretexto de pedir um cigarro, dirige-se até o
fumante desconhecido e lhe pede um
cigarro; em seguida, fala baixo,
perguntando-lhe se está só. A resposta é afirmativa. Prontamente é convidado a
se juntar ao grupo. Foi apresentado informalmente e logo passou a ser um “amigo
de infância”. O nome causou uma certa curiosidade, pelo fato de ser bíblico:
José de Jesus Cordeiro, maranhense de São Luis e filósofo. Assim se apresentou.
Gentil, ofereceu cerveja, comprou
quatro latinhas e entrou no frevo. Animado, sem muito jeito para dançar frevo,
os ritmos que domina bem são: o bumba meu boi, o reggae e o samba. Mas ao se encontrar diante de uma passista de
frevo alagoano, o guapo maranhense se soltou e, em meio à multidão, Matilde
ganhou o primeiro beijo, um desses “roubados”, sem que houvesse percebido.
Surpreendida com a atitude ousada, abriu um largo sorriso e lhe retribuiu com um
beijo na boca. A meia distância as bailarinas observavam a cena do mais novo casal
de foliões.
O vento de fevereiro é mais forte e
sopra do mar para a terra, o que fez esvoaçar a cabeleira de José de Jesus, que
elegante e calmamente, recorreu ao pente que trazia no bolso e penteou os
cabelos. Enquanto isso, Matilde o observava com olhos de pura sedução, com
desejos aumentados ainda mais que os naturais, talvez potencializados pelo efeito
da cerveja.
O bloco deixa a concentração em
direção ao centro histórico de Jaraguá, em meio à multidão, já sem contato com
as amigas, Matilde discretamente conduziu José de Jesus até as amendoeiras
frondosas, ponto ideal para uma aproximação mais efetiva e duradoura. O bloco
atraía milhares de foliões, andando lentamente.
Recostou a cabeça em seu ombro e perguntou
se era cassado. José de Jesus respondeu ser solteiríssimo e brincou dizendo: “Quem
sabe posso me casar em Maceió?”. Riram e continuaram a se beijar.
Os foliões curiosos passam, uns olham o
tórrido namoro, outros nem tanto, e alguns poucos riem e soltam pilhérias. O
casal, de tão junto, um escondia o outro. As mãos se entrecruzam subindo e
descendo pelos corpos; o suor que escorria não os incomodava; Sem pronunciar
uma palavra sequer, beijam-se intensamente e em seguida correm as línguas de
cada um pelo pescoço do outro, num gesto sincronizado e excitante.
A interrupção ocorria apenas para tomar cerveja,
nada além de um ou dois goles. O balbuciar de palavras aparentemente desconexas
passa a ser a linguagem do casal imobilizado em êxtase, dando a entender ter
perdido o contato com o mundo exterior.
O bloco caminha lentamente, os foliões
animados cantam as músicas dos antigos carnavais, e ao som das músicas que
atravessaram os tempos, uma volúpia os mantém cada vez mais juntos e unidos.
Do pranto há muito vertido nas noites
tediosas de sua casa, nesse instante nem a mais remota lembrança lhe passou pela
cabeça. O fervor de viver tem início num desfile de carnaval de rua e, por
ironia do destino, nos braços de um homem desconhecido, de quem nunca ouvira
falar, e menos ainda de onde teria vindo.
O coração não pode ser movido pela razão,
cada um no seu lugar e a seu tempo. Ao elevar o olhar na direção da praia,
avistou o majestoso Memorial da República, à frente. Calmamente tomou a
iniciativa de se encaminhar para lá.
Abraçados e fazendo o passo de frevo
alagoano, alcançaram a parte de trás do Memorial. O clima é o ideal e seguro. Estão
sob a proteção do marechal Floriano Peixoto. A imponente estátua encobrirá a
fornicação. Mais à vontade e disposta, Matilde quer perder ou se livrar da incômoda
virgindade.
Os cuidados básicos foram tomados: camisinhas
distribuídas pela Secretaria de Saúde foram tiradas da bolsa e a maquiagem retocada
com esmero. Colocou gloss, o que a
tornou mais sensual, enquanto José de Jesus saía para comprar cerveja. Ao voltar,
observou as mudanças em Matilde: os lábios com batom renovado são um convite
lascivo para o coito.
O andar lento em direção a José de Jesus;
com um sorriso largo aproxima-se e o beija-o; abraça-o e começa a desabotoar a
camisa, aproximando-se ainda mais. Leva a boca ao ouvido esquerdo, murmura
palavras quase imperceptíveis, passa a língua por dentro e por fora da orelha, com
as mãos pelas costas até a nuca; passa os dedos abertos sob a vasta cabeleira. O
tatear no corpo excita-os como se fosse possível a pele se desgrudar e sair em
pequenos pedaços colados nas mãos.
Os gemidos cadenciados aumentam o ritmo
da respiração e dos movimentos feitos de um sobre o outro, numa alternância
ditada pela boca e pelas mãos que se entrecruzam. Os dois no cio logo se percebem
umedecidos, sem calcinha e sem cueca, as roupas entulhadas no canto.
As preliminares parecem não ter fim, de
tão boas, mas a ânsia de ser penetrada foi se aproximando, até que num piscar
de olhos o ato foi concretizado. E em poucos minutos alcançaram o ápice do
prazer, gozando. A testa franzida, da garganta é solto um grito estridente de
gozo.
A movimentação diminui de intensidade, e
o fogo incontido do tesão traz o relaxamento dos músculos e da cabeça, como
nunca ocorrera ou sequer imaginara.
As vozes e imagens maternas malsinadas de
que a primeira vez seria dolorosa e jorraria sangue em abundância não se confirmaram.
Mais um tabu caiu. O casal se mantém junto, lábios colados e a respiração quase
paralisada. A alegria de brincar fantasiada passou a ter um significado de
felicidade inesquecível. De mãos dadas deixam para trás o Memorial da República
e saem dançando frevo, à procura das amigas.
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