quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Sociedade dos pecados mortos


(*) Osvaldo Epifanio [Pife]


“As pessoas buscam a sua identidade, não naquilo que são, mas no que consomem e exibem, como se dissessem: eu sou aquilo que eu compro”. A frase de Zygmunt Bauman denuncia uma sociedade de consumo “onde não se valoriza o permanente, mas o temporário”. O sociólogo polonês, radicado na Inglaterra, autor de obras definitivas como “Modernidade e Holocausto” e “Vida a crédito” chama isso de “Modernidade líquida (outro livro, também), na medida em que nada é sólido ou conserva a forma por muito tempo”.

Pergunto-me: seríamos nós, agora, uma espécime ameaçada? O ser humano perdeu a capacidade de eternizar seus impulsos apaixonados?

Mudamos, sim. Somos outro exemplar. Não nos importamos mais com a decência dos sentimentos, nem muito menos nos preocupamos com a solidez das decisões. Tudo se molda conforme o recipiente que nos oferecem, pois os desejos não são mais contidos e perdemos completamente o poder sobre eles, como se escapassem pelos dedos e dentes, sem que tenhamos a menor condição de detê-los. Fluem por entre as brechas do querer e evadem-se incontrolavelmente.

Não existem mais identidades permanentes, como aquelas a que estávamos acostumados a ver e a ouvir, de compromissos inalteráveis e que exigiam uma resposta palpável, exatamente para aparafusar a palavra dada. Agora, o que se percebe é um festival de idas e vindas das deliberações. Tudo é muito curto. As cobiças intoxicaram os acordos, como se os dias fossem para sempre apenas nos limites de suas vinte e quatro horas.

Não há, também, passado nem papéis definidos. A vida ficou engraxada, pronta para ser alterada em segundos, como se a história não tivesse importância nenhuma. A memória transformou-se num instante de recreação – como um intervalo do ócio -, não mais uma agenda em que se crava o enredo da vida. Para que isso, se existe o que o substitui: o imediatismo?

Somos guiados a acreditar no sucesso das contabilidades. Dinheiro, projeção, bens e marcas vestem o corpo humano como se fossem os únicas decências. Quem se aventura a querer o diferente? Qual teimoso se mete a dizer que há outra vida senão essa das quantidades? Existe alguém por aí que pronuncie a palavra “desambicioso” em plena liberdade, sem que leve para casa uma desfeita? Sobrevivem os sossegados nesse vendaval de ansiedade? Quem permanece imune às investidas da instantaneidade?

Para curar esse desassossego, mergulha-se no consumo, não necessariamente dos bens, mas dos oportunismos. Compra-se tudo, inclusive a vergonha. Ninguém terá mais na memória as infâmias recentes daquele desregrado que furtou nosso mísero pão dormido. Para quê? Já também somos outros, não em coletividade, mas em voltas vertiginosas em torno do nosso próprio eixo.

Por isso mesmo, a concepção de um “Deus pessoal” é alimentada pela irrefreável aptidão de se instituir a própria existência sem a necessidade do outro, sem a consciência de que há valores comuns que precisam ser lançados ao mundo.

A individualidade, então, reina como se não houvesse sociedade, como se o vizinho fosse apenas um coadjuvante numa cena em que apenas um ator domina o palco. O resto são as outras pessoas que simplesmente existem para espantar a solidão dos planos particulares. Nada mais. Somos simplesmente incapazes de contribuir com aquilo que Martin Buber diz: “O ser humano se torna eu pela relação com o você. À medida que me torno eu, digo você. Todo real é encontro.”

O outro se tornou uma dúvida permanente. Como confiar naquele que também tem seus planos individuais, se eu sou para ele uma suspeita? Disso nasce o medo, a desconfiança. Disso parte todo o individualismo moderno. Somos apenas “um grupo de animais que vivem em conjunto”, “uma delimitação física”.

“A oferta da socialização, da convivência, da união, da amizade” (Zygmunt Bauman) não deve ser um salão vazio, como se não tivéssemos compromisso com o outro, até para interpelar suas manhas.

Quantos pecados eu tenha! Que sejam, pelo menos, percebidos!
(*) Professor

Publicado originalmente no blog do Ricardo Mota.

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