Luiz
Eduardo Soares
(antropólogo e cientista político,
professor da UERJ e da UCAM, ex-secretário nacional de segurança pública, autor
de Legalidade Libertária [Lúmen-Juris] e co-autor de Cabeça de Porco e Elite da
Tropa [Objetiva])
Pela
coragem e bravura com que lutaram contra a violência e os grupos de extermínio. Estas são as primeiras palavras
que aguardam o leitor, no espaço nobre sob o título, dedicado às homenagens
prestadas pelo autor. Na verdade, elas poderiam aplicar-se ao próprio Geraldo
Majella, expressando minha homenagem pessoal a este homem extraordinário, referência
nacional no campo constituído seja pelos movimentos dos direitos humanos, seja
por pesquisadores e estudiosos do tema. A única alteração a fazer, além da
pessoa do verbo, afetaria o tempo, porque Majella, felizmente, não atuou apenas
no passado; continua lutando, no presente: não capitula, não se rende ao
ceticismo, não esmorece ante o clima de desolação que nos envolve. Clima que
emana da persistência, em nosso país, das violações aos direitos fundamentais
da sucessão de execuções e chacinas.
Carlos Drummond de
Andrade, um de nossos poetas maiores, dizia: lutar com palavras é uma luta vã,
no entanto lutamos mal nasce a manhã. Talvez todas as lutas civilizatórias
decisivas pareçam vãs, aos que lhes oferecem seus melhores anos e lhes devotam o
sumo de sua energia solidária e criativa. Mas isso não nos deve levar à
conclusão precipitada de que toda essa potência de vida, todo esse sacrifício,
esse trabalho árduo e arriscado, cercado de tanta incompreensão, tensionado por
tamanha resistência, seja, de fato, inócuo. Tarefas históricas projetam-se em
escalas superiores à percepção individual, superiores às medidas acessíveis a
homens e mulheres comuns, membros de algumas poucas gerações.
O acúmulo de
iniciativas, em suas complexas e contraditórias agregações diacrônicas,
empurra, sim, o processo adiante, na direção de valores superiores. Há
demonstrações que justificam a interpretação otimista, ainda que a história nos
preste seguidos testemunhos de retrocessos e da persistência da barbárie, no
seio mesmo do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico. Por outro
lado, mesmo que o balanço permaneça aberto ao dissídio, porque ambas as
avaliações polares são passíveis de refutação empírica, a otimista e a
pessimista, o fato é que, sendo a prospecção parte do processo real e vetor
relevante na construção prática de seu sentido histórico, não nos resta
alternativa à esperança, a menos que aceitemos correr o risco de tornarmo-nos
cúmplices involuntários do pior.
Para não desistir no
meio do caminho, para não recuar face às pedras da travessia, impõe-se
debruçarmo-nos sobre a história dessa luta, em nosso país. É preciso reconhecer
quem nos inspira, aqueles cujos exemplos iluminam a caminhada. Majella nomeia
os personagens que o animam a prosseguir. De minha parte, cito o próprio autor,
Geraldo Majella, e penso em seu exemplo, quando hesito ante as dificuldades e
ameaças. Penso em sua coragem e sua coerência. Sobretudo, contemplo sua lição
de seriedade, porque não basta a denúncia, é necessária a pesquisa e a análise,
a reflexão e a compreensão profunda sobre as raízes de cada ato. As ações
brutais escandalizam, mas, com freqüência, apenas destacam e dramatizam,
aprofundam e intensificam relações violentas que oprimem sujeitos individuais e
coletivos, em contextos históricos e políticos determinados. Violações dos
direitos fundamentais não raro seguem padrões sócio-políticos permanentes,
geralmente invisíveis, porque recobertos por ideologias da igualdade jurídica
ou da democracia racial.
Mais ainda, Majella
nos ensina, neste seu pequeno e notável texto, que os comportamentos bárbaros muitas
vezes são perpetrados e/ou protegidos e reproduzidos, em instâncias diversas,
pelo próprio aparelho do Estado, especialmente pelas instituições da segurança
pública, em particular as polícias. É interessante observar que o processo de
formação profissional, associado às características da estrutura organizacional,
constitui a principal fonte dos desvios de conduta na linha da brutalidade e do
desrespeito aos direitos fundamentais. Nesse sentido, dir-se-ia, de um modo
geral, que os policiais são vitimados por um mecanismo perverso e paradoxal,
que os faz algozes. A violência do Estado é estrutural; os indivíduos são
mediadores de uma dinâmica que os ultrapassa e envolve, ainda que a liberdade
irredutível, instituinte do sujeito, autorize a sociedade –e a Justiça- a
responsabilizá-los. Importante, todavia, evitar a ilusão que desloca as raízes
institucionais dos processos padronizados e reiterados de violação de direitos,
brutalidades, torturas e execuções, para as idiossincrasias dos desvios de
conduta.
Tem saída? As polícias
estão fadadas à violência, ainda que sob a forma paradoxal da vitimização que
se inverte? O papel histórico das polícias é somente este, marcado pelo viés
étnico e de classe? Sua função está destinada a ser apenas esta, a opressão dos
grupos subalternos e dos indivíduos vulneráveis?
Sim, tem saída. Não,
as polícias não estão condenadas ao eterno retorno de seu passado opressivo,
racista e iníquo. Não estão inexoravelmente e por sua própria natureza destinadas
a desvalorizar seus profissionais e a subordiná-los a uma dinâmica perversa,
que os faz algozes de seus irmãos de classe. Sua função pode ser outra; pode
ser aquela ditada por nossa Constituição democrática: zelar pela vigência dos
marcos legais. Isso significa -numa sociedade em que as leis traduzam pactos
sociais progressivamente comprometidos com a equidade, numa perspectiva
republicana- proteger direitos e liberdades.