domingo, 6 de julho de 2014

Pena Capital sem Julgamento, Sentença ou Fundamento Legal: a naturalização da barbárie


 



 

Luiz Eduardo Soares

(antropólogo e cientista político, professor da UERJ e da UCAM, ex-secretário nacional de segurança pública, autor de Legalidade Libertária [Lúmen-Juris] e co-autor de Cabeça de Porco e Elite da Tropa [Objetiva])

 

Pela coragem e bravura com que lutaram contra a violência e os grupos de extermínio. Estas são as primeiras palavras que aguardam o leitor, no espaço nobre sob o título, dedicado às homenagens prestadas pelo autor. Na verdade, elas poderiam aplicar-se ao próprio Geraldo Majella, expressando minha homenagem pessoal a este homem extraordinário, referência nacional no campo constituído seja pelos movimentos dos direitos humanos, seja por pesquisadores e estudiosos do tema. A única alteração a fazer, além da pessoa do verbo, afetaria o tempo, porque Majella, felizmente, não atuou apenas no passado; continua lutando, no presente: não capitula, não se rende ao ceticismo, não esmorece ante o clima de desolação que nos envolve. Clima que emana da persistência, em nosso país, das violações aos direitos fundamentais da sucessão de execuções e chacinas.

Carlos Drummond de Andrade, um de nossos poetas maiores, dizia: lutar com palavras é uma luta vã, no entanto lutamos mal nasce a manhã. Talvez todas as lutas civilizatórias decisivas pareçam vãs, aos que lhes oferecem seus melhores anos e lhes devotam o sumo de sua energia solidária e criativa. Mas isso não nos deve levar à conclusão precipitada de que toda essa potência de vida, todo esse sacrifício, esse trabalho árduo e arriscado, cercado de tanta incompreensão, tensionado por tamanha resistência, seja, de fato, inócuo. Tarefas históricas projetam-se em escalas superiores à percepção individual, superiores às medidas acessíveis a homens e mulheres comuns, membros de algumas poucas gerações.

O acúmulo de iniciativas, em suas complexas e contraditórias agregações diacrônicas, empurra, sim, o processo adiante, na direção de valores superiores. Há demonstrações que justificam a interpretação otimista, ainda que a história nos preste seguidos testemunhos de retrocessos e da persistência da barbárie, no seio mesmo do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico. Por outro lado, mesmo que o balanço permaneça aberto ao dissídio, porque ambas as avaliações polares são passíveis de refutação empírica, a otimista e a pessimista, o fato é que, sendo a prospecção parte do processo real e vetor relevante na construção prática de seu sentido histórico, não nos resta alternativa à esperança, a menos que aceitemos correr o risco de tornarmo-nos cúmplices involuntários do pior.

Para não desistir no meio do caminho, para não recuar face às pedras da travessia, impõe-se debruçarmo-nos sobre a história dessa luta, em nosso país. É preciso reconhecer quem nos inspira, aqueles cujos exemplos iluminam a caminhada. Majella nomeia os personagens que o animam a prosseguir. De minha parte, cito o próprio autor, Geraldo Majella, e penso em seu exemplo, quando hesito ante as dificuldades e ameaças. Penso em sua coragem e sua coerência. Sobretudo, contemplo sua lição de seriedade, porque não basta a denúncia, é necessária a pesquisa e a análise, a reflexão e a compreensão profunda sobre as raízes de cada ato. As ações brutais escandalizam, mas, com freqüência, apenas destacam e dramatizam, aprofundam e intensificam relações violentas que oprimem sujeitos individuais e coletivos, em contextos históricos e políticos determinados. Violações dos direitos fundamentais não raro seguem padrões sócio-políticos permanentes, geralmente invisíveis, porque recobertos por ideologias da igualdade jurídica ou da democracia racial.

Mais ainda, Majella nos ensina, neste seu pequeno e notável texto, que os comportamentos bárbaros muitas vezes são perpetrados e/ou protegidos e reproduzidos, em instâncias diversas, pelo próprio aparelho do Estado, especialmente pelas instituições da segurança pública, em particular as polícias. É interessante observar que o processo de formação profissional, associado às características da estrutura organizacional, constitui a principal fonte dos desvios de conduta na linha da brutalidade e do desrespeito aos direitos fundamentais. Nesse sentido, dir-se-ia, de um modo geral, que os policiais são vitimados por um mecanismo perverso e paradoxal, que os faz algozes. A violência do Estado é estrutural; os indivíduos são mediadores de uma dinâmica que os ultrapassa e envolve, ainda que a liberdade irredutível, instituinte do sujeito, autorize a sociedade –e a Justiça- a responsabilizá-los. Importante, todavia, evitar a ilusão que desloca as raízes institucionais dos processos padronizados e reiterados de violação de direitos, brutalidades, torturas e execuções, para as idiossincrasias dos desvios de conduta.

Tem saída? As polícias estão fadadas à violência, ainda que sob a forma paradoxal da vitimização que se inverte? O papel histórico das polícias é somente este, marcado pelo viés étnico e de classe? Sua função está destinada a ser apenas esta, a opressão dos grupos subalternos e dos indivíduos vulneráveis?

Sim, tem saída. Não, as polícias não estão condenadas ao eterno retorno de seu passado opressivo, racista e iníquo. Não estão inexoravelmente e por sua própria natureza destinadas a desvalorizar seus profissionais e a subordiná-los a uma dinâmica perversa, que os faz algozes de seus irmãos de classe. Sua função pode ser outra; pode ser aquela ditada por nossa Constituição democrática: zelar pela vigência dos marcos legais. Isso significa -numa sociedade em que as leis traduzam pactos sociais progressivamente comprometidos com a equidade, numa perspectiva republicana- proteger direitos e liberdades.

 

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